terça-feira, 14 de maio de 2013

O projecto ENCODE e a definição de função biológica


Muito se fala (ou falava há uns tempos atrás) do projecto ENCODE (quanto aos criacionistas, estes têm andado histéricos). Mas o que o ENCODE fez foi chamar funcional  a tudo o que reage, a tudo o que tem actividade bioquímica, ou metilação, ou então pela sua localização, afirmando que 80% do genoma é funcional. Mas nada disso demonstra que os elementos têm obrigatoriamente uma função. Os participantes do ENCODE não usaram o termo funcional como a maioria dos cientistas usa (normalmente funcional indica que é evolutivamente relevante e isso detecta-se, detectando a acção da selecção natural*). A verdade é que a maior parte do genoma é lixo. É lixo genético (uma boa alcunha para os criacionistas). Este facto pode ajudar a aguentar uma taxa de mutação (por nucleótido ou por genoma diplóide, por geração, multiplicando pelo número de pares de bases) tão elevada como a taxa de mutação em humanos.
Os criacionistas não enxergam os pormenores porque não suportam a ideia de que o seu deus particular tenha cometido o erro de pôr lixo no genoma. Eles estão enviesados pela religião desde o início e por mais que leiam, por mais que lhes tentem explicar, não conseguem aprender nada sobre a realidade do mundo em que vivem.

*Nota: Também não é com este sentido que os criacionistas usam o termo “função” – estes utilizam-no no contexto de propósito/ design. Mas se alguém quiser dizer que reagir com determinadas moléculas, com determinados resultados (ex.: genes que dão proteínas) é ter função, só pode mesmo ser num contexto evolutivo, pois as nossas moléculas ao reagirem com outras não indicam nada acerca de propósito/design – são apenas moléculas a reagirem com outras moléculas, não há propósito para elas (nem há códigos); com o que sabemos, podemos é determinar se aquilo que resulta dessas reacções é relevante para a evolução.


Referências:



http://www.genetics.org/content/156/1/297.full.pdf+html



Actualização (18/9/2013):
Descobri a frase em que os investigadores do ENCODE sumariam a sua interpretação dos resultados da sua pesquisa, que vai de encontro àquilo que eles entendem como função: «The vast majority (80.4%) of the human genome participates in at least one biochemical RNA- and/or chromatin-associated event in at least one cell type.» (1)

Isso não é sequer ter função, quanto mais ter uma função crítica

Tudo o que diz é que 80% do ADN vai ter algo ligado a ele, nalguma altura, numa qualquer célula do corpo humano, ou pode mesmo ser transcrito. Esta não é uma definição de função aceitável - a melhor palavra para a descrever é "inútil".

É esta a minha opinião e pelo que tenho visto a da maioria dos cientistas (que manifestaram opinião).

PZ Myers, professor na Universidade do Minnesota, explica porque é que a definição de função usada pelos investigadores que participaram no projecto é completamente inútil: «Se alguma vez um factor de transcrição se ligar, ainda que brevemente, a uma porção de DNA, numa qualquer célula, eles declararam que é funcional. Isso é um absurdo. A actividade da célula é bioquímica: (…) Proteínas individuais vão aderir a qualquer extensão isolada de DNA que pode ter uma sequência com capacidade de ligação, mas isso não quer dizer necessariamente que a constelação de “enhancers” e de promotores estão presentes e que toda essa maquinaria de transcrição irá operar regularmente nesse sítio. É um sistema com ruído.» (2) Mesmo que o DNA seja transcrito em RNA, nada me diz que esse RNA vai sequer fazer alguma coisa de relevante para o normal funcionamento da célula (a não ser que alguém queira aprofundar).

Fail. Epic.

Função pode ser algo que afecta o organismo como um todo, um processo que é importante para a sobrevivência e reprodução dos indivíduos de uma espécie – ex.: a capacidade de realizar a respiração aeróbica ou a fotossíntese. Isso pode traduzir-se em relevância evolutiva. Esta é uma definição útil de função.


E para terminar, aqui fica o resumo de um artigo intitulado «On the Immortality of Television Sets: “Function” in the Human Genome According to the Evolution-free Gospel of ENCODE» em que uma série de falhas técnicas cometidas pelos investigadores do projecto ENCODE é exposta: 

«A recent slew of ENCODE Consortium publications, specifically the article signed by all Consortium members, put forward the idea that more than 80% of the human genome is functional. This claim flies in the face of current estimates according to which the fraction of the genome that is evolutionarily conserved through purifying selection is under 10%. Thus, according to the ENCODE Consortium, a biological function can be maintained indefinitely without selection, which implies that at least 80 – 10 = 70% of the genome is perfectly invulnerable to deleterious mutations, either because no mutation can ever occur in these “functional” regions, or because no mutation in these regions can ever be deleterious. This absurd conclusion was reached through various means, chiefly (1) by employing the seldom used “causal role” definition of biological function and then applying it inconsistently to different biochemical properties, (2) by committing a logical fallacy known as “affirming the consequent,” (3) by failing to appreciate the crucial difference between “junk DNA” and “garbage DNA,” (4) by using analytical methods that yield biased errors and inflate estimates of functionality, (5) by favoring statistical sensitivity over specificity, and (6) by emphasizing statistical significance rather than the magnitude of the effect. Here, we detail the many logical and methodological transgressions involved in assigning functionality to almost every nucleotide in the human genome. The ENCODE results were predicted by one of its authors to necessitate the rewriting of textbooks. We agree, many textbooks dealing with marketing, mass-media hype, and public relations may well have to be rewritten.»*


* Nota: Uma maneira fácil de entender a distinção entre “Junk DNA” e “Garbage DNA”:

- “Junk DNA” (o mesmo que “DNA lixo” ou “lixo genético” em português): São coisas que se vão guardando porque não há vantagem em deitar fora, mas que, apesar de algumas coisas (poucas) poderem vir a ser úteis, mal não faz se não estiverem lá.


- “Garbage DNA”: são coisas que começam a cheirar mal e de que uma pessoa acaba por se livrar. (3)


Refs.: 

  1. An integrated encyclopedia of DNA elements in the human genome, The ENCODE Project Consortium, Nature 489, 57–74 (06 September 2012) doi:10.1038/nature11247 (disponível aqui: http://www.nature.com/nature/journal/v489/n7414/full/nature11247.html)

  1. ENCODE gets a public reaming,  PZ Myers, February 22, 2013 (disponível aqui: http://scienceblogs.com/pharyngula/2013/02/22/encode-gets-a-public-reaming/)


  1. «Not dead yet: junk DNA is back», Merlin Crossley , 15 March 2013 (disponível aqui: http://theconversation.com/not-dead-yet-junk-dna-is-back-12766)

7 comentários:

  1. O que vejo no texto é somente uma forma de tentar enquadrar toda e qualquer descoberta na teoria da evolução. Acredito que quem não aguentaria saber que não existe lixo no DNA são os evolucionistas, que agora estão se levantando contra as próprias descobertas que fizeram. São mais de 30 artigos publicados na revista nature falando a respeito do DNA lixo e suas funções. Se uma revista de peso como a nature publica um erro desses repetidamente, como posso confiar no restante do que ela publica?

    ResponderEliminar
  2. Só um exemplo:
    "The human genome encodes the blueprint of life, but the function of the vast majority of its nearly three billion bases is unknown. The Encyclopedia of DNA Elements (ENCODE) project has systematically mapped regions of transcription, transcription factor association, chromatin structure and histone modification. These data enabled us to assign biochemical functions for 80% of the genome, in particular outside of the well-studied protein-coding regions. Many discovered candidate regulatory elements are physically associated with one another and with expressed genes, providing new insights into the mechanisms of gene regulation. The newly identified elements also show a statistical correspondence to sequence variants linked to human disease, and can thereby guide interpretation of this variation. Overall, the project provides new insights into the organization and regulation of our genes and genome, and is an expansive resource of functional annotations for biomedical research."
    http://www.nature.com/nature/journal/v489/n7414/pdf/nature11247.pdf

    ResponderEliminar
  3. Matéria de uma revista brasileira, que anda longe de ser criacionista, logo, já derruba por terra a sua teoria da conspiração criacionista em torno do DNA lixo!
    http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/estudos-derrubam-teoria-do-dna-lixo-em-nova-organizacao-do-genoma-humano

    ResponderEliminar
  4. “[nos] últimos anos, os cientistas descobriram que as regiões não codificadoras do genoma, longe de ser lixo, contém milhares de elementos reguladores que agem como ‘chaves comutadoras’ genéticas para ligar e desligar genes.” Neste caso, o lixo ativou os genes que controlam o desenvolvimento do dedo e do pé humano.

    Mas isto não foi a única descoberta interessante que eles fizeram. De acordo com o artigo, descobrindo estas diferenças genéticas foi “especialmente surpreendente, pois os genomas humano e de chimpanzés são extremamente similares overall.”

    Como é que vc pode dizer que evolutivamente não é viável as funções do DNA lixo? Veja que o mesmo artigo trás tbm uma possívelo implicação na semelhança genética entre homens e chimpanzés. Acredito que seja por ameaçar derrubar os paradigmas de semelhança com chimpanzés, assim como o lixo evolutivo, argumento usado por Dawkins que os evos estão se levantando contra, e mais uma vez se confirma o dogmatismo e religiosidade dos darwinistas!
    http://news.yale.edu/2008/09/04/yale-researchers-find-junk-dna-may-have-triggered-key-evolutionary-changes-human-thumb-an

    ResponderEliminar
  5. Muita conversa, mas sempre a bater na mesma tecla. Já foi explicado porque é que quando se referem a função nesse contexto, estão a usar uma definição estranha e completamente inútil. E é isso o que mais interessa. Acho que não percebeu muito bem o que leu. Fail. Epic.

    ResponderEliminar
  6. Ainda não li sobre isso mas creio que o clero evolucionista realmente vai vilipendiar o ENCODE.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não há nada de semelhante a um "clero" na comunidade científica - o que há são cientistas que fazem o seu trabalho interpretando bem os resultados e expressam-se de forma a que não haja confusões, enquanto que outros criam confusão com o mau uso de certos termos propositadamente (como neste caso do ENCODE) devido, por exemplo a motivos políticos.

      Eliminar